segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Deuses americanos - Neil Gaiman

Deuses americanos - Neil Gaiman






"Deuses são reais, se acredita neles"
            
      Deuses americanos, obra do famoso e consagrado autor inglês Neil Gaiman, foi lançada em 2001, mas voltou à lista dos mais vendidos recentemente com o lançamento da editora Intrínseca de uma edição cheia de extras. Muito interessante aliás, por trazer a versão completa do livro selecionada por Gaiman, ou seja, sem os recortes feitos nos primeiros lançamentos. Além disso, a nova edição traz uma introdução do autor depois de anos do livro finalizado, comentários dos tradutores, e até mesmo uma parte que Gaiman decidiu deixar de fora da obra finalizada.
            O livro é um dos mais premiados e também mais ambiciosos de Gaiman e chama atenção exatamente por fugir completamente do que já conhecemos de mais tradicional sobre a literatura que abrange a mitologia de uma maneira geral. Acredito que esse seja um dos pontos altos do livro já de primeira: conseguir atrair o público infanto-juvenil, já acostumado com a mitologia dado ao imenso sucesso das muitas coleções de outros autores – principalmente Rick Riordan - que perpassam diferentes deuses, povos e até mesmo momentos históricos. Entretanto, de muitas maneiras Deuses americanos tem pretensão mais adulta, ainda mais considerando a construção da narrativa, que está longe de ser simples, e pode deixar o leitor um pouco desesperado.
            Confesso que ter passado por outras obras de Gaiman - devo enfatizar “O oceano no fim do caminho”, ~que continua sendo um dos meus favoritos~ -  tornou a compreensão de Deuses Americanos um pouco mais fácil, porque já é possível identificar traços que são próprios de Gaiman e da sua maneira de escrever. Sua autenticidade vem muito do fato de em algum momento na narrativa, você se perguntar por que esta acontecendo tal situação, e absolutamente nada fazer sentido, para que o autor brilhantemente faça conexões e ganchos, no final, final mesmo, nas últimas páginas. Ou seja, não espere uma leitura rápida e despretensiosa.
            A história se inicia quando somos apresentados ao protagonista, Shadow, um ex- treinador de academia que acabou na cadeia depois de um roubo que deu errado. Quando o encontramos, ele -muito confuso, e esperançoso de voltar para sua casa e sua esposa, - foi liberado de um tempo de sua pena, infelizmente porque sua mulher morreu. Completamente desolado, e até mesmo apático ao fato, ele encontra uma figura estranha, que se apresenta como Wednesday, e que lhe oferece um emprego. A proposta incluiu fazer o que ele quiser e viajar pelos Estados Unidos para resolver seus problemas, carregar suas encomendas, entre outras atividades estranhas, das quais ele não quer muitas perguntas. Com o decorrer da história, Shadow aceita a oferta, por mais estranho que aquele homem fosse. Logo descobrimos que na verdade ele é uma divindade personificada que existe pela fé das pessoas. Na obra, se alguém acredita em um deus, ele existe e vive como homem. Por isso, existem tantos deuses nos EUA, e Gaiman é extremamente coerente em apresentar uma enorme variedade de divindades: desde as mais clássicas que vieram com a imigração europeia, até as africanas e indígenas, e também por árabes e asiáticos. É bastante interessante que o autor busca demonstrar as muitas hierarquias sociais em relação a entrada de diversos povos nos EUA, estas que foram transportadas aos próprios deuses e sua dinâmica.  Quando Shadow começa a acompanhar Wednesday, é possível perceber que ele foi jogado em um contexto de guerra, porque os deuses precisam de adoração para viver; e só viverá enquanto seu último fiel respirar. E os deuses velhos, aqueles que estão no país há longos séculos perderam espaço e seus fiéis quase que por completo, para os verdadeiros deuses americanos modernos: o dinheiro, a internet, as mídias televisivas e o consumismo.
            Com medo de perecer, Wednesday incube Shadow de percorrer os Estados Unidos em busca de deuses que estejam na mesma situação e queiram se juntar a sua causa, e assim reviver a glória antiga depois de derrotar as modernidades tecnológicas. Ou seja, a história é centrada em um grande conflito, nos deuses e em seus poderes! Se você pensou isso, lembre-se que é uma obra de Gaiman, e os deuses são personagens secundários, a história é sobre Shadow. E os deuses não assumem em nenhum momento aquele jargão clássico de heroísmo, tanto os velhos quanto os modernos. Eles tentam sobreviver como podem, ou seja, são gananciosos, perversos, egoístas, como qualquer personagem bem construído que mostra suas diversas facetas, algo que funciona extremamente bem com a obra, que foge do óbvio sem maniqueísmos evidentes.
            Em alguns momentos, a narrativa parece bastante arrastada, mas devo dizer, isso pode ser consequência da edição sem cortes. Entretanto, é aparente que algumas coisas parecem desconectadas do contexto, como eu disse, não tenha medo de estar perdido na narrativa, porque é parte da experiência. O final é muito bem construído, Gaiman consegue amarrar as muitas pontas soltas que aparentemente estavam distantes do eixo central.


            Deuses americanos é realmente singular, o estilo literário de Gaiman é sempre muito encantador e maravilhoso, e esta obra consegue reunir suas melhores características. Apresentando diferentes mitologias, algumas com certeza você nunca ouviu falar sobre, e ainda demonstrando sua crítica sutil à sociedade moderna, ele conduz o leitor com Shadow a uma experiência inovadora, que em minha opinião faz jus ao seu trabalho como escritor, seus prêmios e o sucesso da obra que até rendeu uma série produzida pela HBO.

                                                                                                              Sorcha